quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Análise: CD "Cavalo" - Rodrigo Amarante

Olá dialéticos de plantão!
A análise de hoje é de um trabalho pra lá de intrigante. Confesso que a princípio, não gostei desse álbum, mas depois de ouvir "Cavalo", primeiro álbum sólo do ex-guitarrista e vocal dos eternos Los Hermanos, Rodrigo Amarante, com mais calma, atenção e precisão, descobri que é um álbum muito mais complexo e rico do que se imagina. Em 2013, o cantor e compositor expressou suas emoções mais sinceras através de seu primeiro disco sólo. O álbum reúne faixas em inglês, francês e português. Mostra uma clareza indie mesclado com um folk bem particular do momento que vive Amarante. Quem me conhece sabe o quanto sou fã do artista, e como disse no início do post, antes não gostava do disco, mas depois ouvindo com mais calma e paciência, pude então amar o "Cavalo".
O álbum não tem capa, apenas as letras das músicas
Para essa análise, conto com uma material de apoio da conceituada Revista Rolling Stone que conseguiu tirar do Amarante, uma entrevista explicativa sobre cada faixa. Vamos lá!

Nada em Vão: “Essa foi uma das últimas músicas que escrevi para o disco. Até por isso, ela fala literalmente dessa coisa do espaço. Eu já estava com o espírito de tirar: ela não tem baixo, tem espaços enormes e toda essa dimensão que pode falar entre uma pessoa e outra. Ela representa bem essa ideia do disco, das lacunas que existem entre uma coisa e outra. Por isso que eu a coloquei logo de cara, com aquele saxofone gritando – 'fuuueeen!'." (R. Amarante)

Sinceramente, essa é uma música para se pensar na existência. No que vivemos e no que estamos vivendo. Com todas essas lacunas que o Rodrigo falou, é possível entender o sentido de tantos minutos e horas existirem, e o engraçado é, que se repetem no dia seguinte. Em aspecto de letra, nada a comentar. A poesia e lapidada sentimental está na medida. E não falo como fã, mas como um simples resenhista mesmo. Agora pra falar do instrumental, escrevo como um mero crítico musical: cambaliadas de violão com alguns sinos e instrumentos mais dispersos, compões a faixa. Segundo o Amarante, foi ele mesmo quem tocou o sax e por isso saiu meio desafinado. Digo que se soasse afinado, a música não seria a mesma, pois sem sombra de dúvidas, tudo se encaixou perfeitamente com a harmonia e temática proposta.

Hourglass: “Essa é mais uma sobre o 'diálogo interno'. Sou eu, em diálogo comigo mesmo, tentando entender o ritual de escrever uma música. E tem a ver com hipnose. Não está claro, mas a letra fala sobre eu tentar me hipnotizar, criando uma espécie de ritual de comunicação com esse 'duplo' que inspira, controla a inspiração e que viabiliza a obra. Mas não parece [isso], porque não estou dando de bandeja. É sobre o tempo em que eu me via sentado com a caneta e a página branca, pensando, um cigarro atrás do outro, uma garrafa atrás da outra. Os versos vieram a partir disso - espera, concentra. Nós somos animais rituais.” (R. Amarante)

Após uma mórbida "Nada em vão", respiramos mais alegres com "Hourglass" (Ampulheta). Mas não se engane, a letra é mais intimista que o instrumental. Percebo duas facetas muito legais nessa música: um samba inglês com um bolero norte-americano. Não sei se é isso, mas é uma faixa fora do normal. Nunca ouvi nada parecido. Olha que já  ouvi muita coisa nesse pouco tempo de vida.

Mon Nom: “É sobre ser estrangeiro, se expressar em outra língua e as maravilhas que isso gera, desvios e confusões. Resolvi usar o francês aqui para criar uma espécie de metalinguagem, outra camada na música. Eu começo falando que sou estrangeiro e que não falo da mesma forma que você. A partir daí, começo a cantar de um jeito que leva a pensar que estou falando em metáforas. Mas como acabei de dizer que não tenho o domínio da língua, você se pergunta: 'É ou não é metáfora? Qual é o assunto?'. Aí gera um espaço para interpretação, uma folga, que pode ser interessante. É uma experiência que ainda estou entendendo no que vai dar. Minha ideia é preservar os espaços e tentar seduzir pela falta, talvez.” (R. Amarante)

Sem dúvidas, "Mon Nom" (Meu nome) é uma canção cheia de dúvidas. Não sei se estou certo, mas a música tem um instrumental bem oriental, cantada em francês por um brasileiro que tenta dizer que é estrangeiro. Só o Amarante mesmo pra fazer uma arte dessa. E estou certo que com toda a minha tolerância musical, percebo que essa música podia ganhar algo a mais. Não sei, mas talvez uns metais ou gaita. Ou quem sabe até um solo simplista de guitarra. Porém isso não tira o brilho da música.

Irene: “É sobre a falta, um amor que não se consegue esquecer. Quando digo que já não sei o nome dela, é que ela pode ter se casado e mudado de nome. O nome dela eu sei, é Irene. Escolhi esse nome porque é uma referência à ‘Irene’ do Caetano [Veloso], e à do Ciro Monteiro. No caso do Caetano, é a mulher que em exílio ele imaginava sorrir, o símbolo do amor que ficou do outro lado do continente. Para mim, ela representa os amores que tive de largar cada vez que me mudei e inventei coragem de recomeçar na infância - porque na infância eu já amava muito intensamente. A Irene é um amor irrealizado que jamais vai morrer. É um nome que abrange essa mulher, que não precisa ser mulher. Pode ser um lugar, uma memória que ficou e não se apaga.” (R. Amarante)

Colocando um pouco do lado fã aqui: passei uma semana inteirinha cantando: "saudade eu te matei de fome, e tarde eu te afoguei com a mágoa". Só esse comecinho bastava para deixar meus momentos de descontração mais intensos. Confesso que essa faixa é do jeito que era pra ser. Sem pôr e nem tirar. Um aspecto folk/indie magistral!

Maná: “Imaginei que seria a que iria tocar mais, e foi por isso que a lancei antes. Escrevi para minha irmã, Marcela - daí o Má, que é o apelido dela. Fiz a música quando ela estava triste, se separando. ‘Maná’ é uma palavra que vem da história dos judeus quando estavam em exilio no deserto: é a comida divina que Deus deu para eles sobreviverem, e termina por significar a graça, uma benção. Fala do ritual de cura, e de coragem, porque diz que ‘o que é para acontecer está acontecendo’. É também sobre a música enquanto forma de cura, que é uma ideia muito antiga e em que eu acredito muito. Tem a ver com as religiões africanas, porque fala sobre ‘ponto’ – parece que eu estou falando de 'ponto de macumba', e eu também estou. Mas também é no sentido de 'o ponto da conversa'. Ou seja, o importante é saber se amar.” (R. Amarante)

Lembra do samba inglês que falei no início? Aqui ele se adequa mais perceptível. Diria ser uma canção bem ritualista, e porquê não? Mas eu a enxergo muito além do que foi dito pelo próprio Amarante: para mim é uma canção coletiva com aspectos de festa após uma grande luta emocional, ou até mesmo uma vitória numa partida de futebol. É o ápice. O suprassumo!

Fall Asleep: “É uma canção de ninar que escrevi para mim mesmo. Eu sempre tive insônias incríveis. Graças a Deus não as tenho mais, mas de vez em quando tenho um ciclo delas. Daí eu falei: ‘Quer saber? Vou fazer uma’. Mais uma vez, sou eu me separando de mim mesmo e expressando a vontade de desligar a cabeça. É uma coisa pura, do desejo de conseguir se desligar do mundo, da vida, e sonhar, ter uma experiência fora do ordinário.” (R. Amarante)

Com certeza meu filho vai dormir muito ao som dessa música! Quase choro ao me identificar com esses trechos da música:

Something I’ll even dare to know
Let that be my name
Open like I’m alone
Empty my eyes
From stories I’m in
Brake me from being myself
Day so cruel
And night so fair
The tales I knew
Are true somewhere

Algo que eu ainda me atreverei a saber
Deixe que seja meu nome
Abra-se assim como estou sozinho
Esvazie meus olhos
De histórias de que faço parte
Parar de ser eu mesmo
Dia tão cruel
E a noite tão bela
Os contos que eu conhecia
São verdadeiros em algum lugar
 
É como se fosse um encontro entre amigos que nunca se viram antes. É encontrar-se no outro! Lindo!
 
The Ribbon: “Nessa eu tentei escrever através de imagens. Ou seja, a música não tem nenhum adjetivo, assim como a maior parte do disco. Se uso adjetivos, eu estou qualificando, e daí estou direcionando o que você vai ver. Mas meu interesse é não definir tanto. Essa música é a história do ponto de vista de alguém...[hesita] Eu não sei se devo te dizer. Bom, eu vou dizer, foda-se! É do ponto de vista de alguém que está morto. Ela fala sobre um personagem cujo destino foi passivo diante do próprio destino, e ele só consegue ver isso quando não está mais vivo. É alguém que foi levado a fazer a coisa que achou que fosse certa, porque a figura paterna o levou a crer nisso. Ela tem relação com uma outra música do disco. Quando a gente chegar nela eu te digo.” (R. Amarante)

"The Ribbon" (A Fita) faz-me lembrar da infância, quando tudo era singular, era tudo tão meu. Até o sol que nascia para todos, em minha mente, era propriedade exclusiva minha. Belo arranjo e letra sem igual. Creio que na parte letrista, o Amarante é minha principal, ou senão maior referência. Parece até que pensamos igual as vezes. (ou que eu estou plagiando ele hehe)

O Cometa: “Também é sobre a falta. Mas é a falta de um amigo querido, que é o poeta Ericson Pires, que morreu no ano passado. Foi um grande amigo que conheci logo que entrei na PUC-RJ. Já era veterano e nós nos tornamos grandes amigos. E ele foi meu grande amigo, mas também meu professor, e um cara que me ensinou muito. Grande cabeça, grande louco, culto, intelectual. Essa música foi um retrato dele à minha moda. Também é uma coisa que tem a ver com a saudade que eu sinto dele.
(...) ‘O Cometa’ é [Henry] Mancini puro: é meu amor pelo Peter Sellers e os filmes do Blake Edwards, na genialidade absurda que ele teve de escrever temas de comedia com uma delicadeza e uma inteligência absurda, não subestimando.”
(R. Amarante)

Músicas de homenagem costumam ser batidas e chatas, mas no caso de "Cometa" não enxergo isso. Amarante continua o disco com a métrica folk da primeira faixa. Talvez essa música interpretada ao vivo soe mais indie e familiarizada. Mais uma bela canção!

Cavalo: “Essa é a mais pura, no sentido de ser só imagens. É a que menos tem letra, é a mais sintética, e a que também toca no lance do ‘ritual’. É uma descrição de um sonho de um segundo, uma imagem que atravessa do mundo do sonho para o mundo vivo, através da memória. E que termina por representar todo esse conceito do duplo, de eu enxergando a mim próprio.
O lance do japonês na letra tem a ver com duas coisas. Uma é o formato da escrita, do poema, que é conciso com imagens, como os japoneses fazem. Sempre fui fã da arte japonesa desde criança, não sei bem por que. Tento me perguntar: ‘Será que é quando eu morei em São Paulo eu gostava de ir na Liberdade?’ E me lembro da primeira vez que vi o Sonhos do [Akira] Kurosawa. Tem uma cena que mostra os caras tentando achar um acampamento na neve e não conseguem ver nada, estão perdidos. O líder do grupo não aguenta mais, desmaia e tem um delírio: ele vê a tempestade na forma de uma mulher, que abriga ele com um cobertor de fios brancos, como se a tempestade se tornasse uma coisa confortável, aconchegante. Nesse delírio, ele reconhece que ela é a tempestade e significa a morte dele, e o sol abre. Esse trecho me tocou profundamente, e me lembro de que os meus sonhos sempre têm ventania, uma luz prateada, [que está em] um lugar fora do mundo, entre o dia e a noite. Essa música foi eu tentando ‘dar de volta’ aos japoneses: ‘Olha, eu fiz isso pra vocês, porque vocês me deram tudo isso’. O disco é cheio dessas coisas." (R. Amarante)


Chegamos na faixa-título e aqui já "respiramos" com mais dificuldade por conta do expressionismo ritualista do álbum. O japonês falando expressa toda a canção. Então fico sem palavras para resenhar essa canção!

I’m Ready: “‘I’m Ready’ é o espelho de ‘Ribbon’. É outro personagem da mesma história. [Pensa] Será que digo exatamente o que é? Eu me pergunto isso, porque penso: 'Daí, qual é a graça?' Acho que a graça mesmo é a pessoa ouvir a música e se perguntar. Se eu disser ‘tem uma relação entre as duas músicas, são dois personagens da mesma história, dois pontos de vista’, eu acho que já é o suficiente. Está claro: se você ouvir, vai ver o que é.” (R. Amarante)

"I'm Ready" (Eu estou pronto) soa - pra mim - como um diálogo com Deus e com esse outro que está em nós, que o compositor tanto falou e todo o disco. É o lado do epitáfio antes da hora.

Tardei: “É a mais autoexplicativa. Ela fala da minha infância, e também desse momento: desse disco, de eu voltar para cá, de todas as vezes que tive de partir, deixar pra trás e ser corajoso, e o que eu trago de volta – o meu rosário, meu fio de contas, que é esse disco. Disco é uma coisa que você precisa sentir que está pronto. E eu senti que essa música era o fim dele.
É por isso que eu disse que me exponho tanto nesse disco: eu estou falando de mim, da minha história, de como eu entendo que sou. Essa música fala desse momento, de eu voltar pra casa, trazendo esse disco, e o que ele traz com ele.” (R. Amarante)


É  a faixa de despedida, e que despedida hein! Não há mais nada a acrescentar. Está tudo metricamente tudo bem encaixado e absolvido! "Cavalo" é um disco para mastigar e ouvi-lo sozinho. Ouvir pra encontrar o duplo que mora em si. É se reencontrar. Um disco coeso e complexo, sim, mas com características bem definidas quando se ouve com atenção. Recomendadíssimo!

Letras: 10
Produção: 9,5
Projeto Gráfico: 7
Interpretação: 9,5

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